Preconceito lingüístico dentro de casa

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Antes de ir ao Brasil por 3 semanas, aconteceu um lance no trabalho que me intrigou demais. Intrigou na verdade é modesto, o lance me deixou revoltada mesmo. Mas vamos aos poucos.

Você já ouviu falar em preconceito linguístico?

De maneira simplificada, preconceito linguístico é o julgar alguém ou um grupo por conta de seu modo de falar. Ele pode vir disfarçado de tom de brincadeira, pode ser mais direto e desrespeitoso, mas ele tá sempre lá. Quer ver como? Gente que tira sarro de quem faz o R caipira, gente do sul/sudeste que imita algum sotaque do norte/nordeste, gente que julga o nível intelectual do outro por ele cometer erros gramaticais como não usar plural, só pra citar alguns exemplos.

O assunto é longo e complexo e como o blog não é tese de monografia, não vou me alongar nisso. Mas antes de contar o porquê deu estar falando desse assunto, recomendo MUITO a leitura desse texto da Revista Galileu (é um texto curtinho e muito elucidativo).

Apesar de brasileira, quando falo inglês acabo usando um sotaque meio americano, ou como já ouvi muitas vezes aqui, tenho um tal de American twang (tendo crescido e passado anos assistindo filmes e seriados americanos, não podia dar em outra). Aí inevitavelmente eu falo wárer ao invés de watttter, burer ao invés de buttter, etc. Só que por trabalhar e viver na Irlanda, às vezes acabo misturando um pouco com a forma que os irlandeses usam, principalmente com as meninas, que estão mais acostumadas e expostas à maneira local de falar.

Pois bem. Aí um dia chego no trabalho e É. comenta com o pai que quer ir de patinete pra escola:

- Daddy, can I bring my scoorer?

O pai fica sério e aumenta um pouco o tom de voz:

- SCOOTTTTTER, SCOOTTTER, É.

Ela repetiu do jeito que ele mandou e saiu da cozinha. Ele tava fazendo alguma coisa na pia, mal olhou pra mim e disse num tom de "fazer o quê?": "Americanisms".

Fiquei intrigada. Aquilo era uma indireta pra mim?

É. entra na cozinha e usa a palavra scooter novamente num sotaque totalmente americano, com o R rolado. O pai ficou claramente perturbado e disse: SCOOTTTER, BUTTTTER, WATTTER - só vai pra escola com o patinete se falar direito.

Fiquei absolutamente chocada. Como assim "se falar direito"? Ela não tá falando errado, não, chefinho!

Ué, a menina troca "she" por "her" o tempo todo e erra uns verbos no passado e ninguém fala nada. Aí ela pronuncia uma palavra com um sotaque diferente e ele tem esse surto?

Que tipo de educação esse pai está transmitindo à filha? Que quem fala diferente fala errado? Que quem não fala como ele não é digno? Como ele pode ter uma reação dessas vivendo e criando as filhas numa cidade multi-cultural como Dublin, tendo um irmão que mora nos Estados Unidos, tendo um outro irmão que namora uma menina de Honduras, tendo a filha matriculada numa escola onde a professora é francesa (e tem um sotaque carregadíssimo) e vários coleguinhas vindos de famílias de lugares diferentes?! Como ele pode corrigir a menina dessa maneira com uma minder (eu) que passa umas 4 horas com a filha dele falando com um sotaque não-irlandês?

Isso, meus amigos, é preconceito linguístico sendo enraizado na cabecinha da pobre É. Depois dessa, até evitei falar a palavra "scooter" na frente dele.


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