Na verdade, o meu interesse explodiu mesmo durante o curso de mestrado da UCD, já que tínhamos listas enoooormes de leitura pra fazer, e acredite, eu fazia quase tudo com muito gosto, porque é um assunto que me interessa, que me encanta.
Pois bem. Numa dessas leituras há um tempão atrás eu vi uma passagem que comentava sobre como era difícil pra casais multiculturais mudarem a língua de comunicação entre si após uma língua já ter sido estabelecida. No caso, se um casal se conheceu "em inglês", dificilmente eles mudariam essa língua pra outra, sabe?
Inclusive um dos artigos que fala sobre esse assunto é o "Language choice in bilingual, cross-cultural interpersonal communication" escrito por Ingrid Piller. Entre outras coisas, ela comenta que o fato dos casais terem dificuldade de mudar a língua de primeiro contato pode ser explicado pela relação entre língua e identidade. Em um estudo realizado por Koven em 1998, foi levantada a questão de que bilíngues se comportam diferentemente em suas línguas, o que significa que suas performances mudam pois contratam experiências e posições diferentes nas duas comunidades linguísticas:
So, there is evidence that bilinguals say different things in different languages, which makes it quite obvious why intercultural couples stick to the language of their first meeting: they might lose the sense of knowing each other, the sense of connectedness and the rapport derived from knowing what the other will say in advance if they switched.
Uma outra questão interessante é a de poder. Bordieu (aquelas aulas de Teoria da Comunicação no 1º ano de Rádio e TV nunca foram esquecidas!) já falava que língua é poder. E de fato, se o casal mora num país cuja língua seja a de um dos parceiros, este estará claramente sob vantagem. Ser um nativo em seu país te deixa numa posição muito forte e o parceiro marginalizado.
The compromise to let one partner be the native, and the other the native speaker may well be conducive to a more egalitarian distribution of power in a relationship.
A Ingrid Piller também pesquisou essa questão de poder e gênero, quer dizer, ela queria saber no geral, quem é que fica numa posição linguística mais fraca. Das 447 pessoas que participaram da pesquisa, 22% eram mulheres que haviam migrado para a usar a língua majoritária com seu parceiro, 21% mulheres que migraram e usam sua própria língua com o parceiro, 3% homens que migraram e usam a língua majoritária da parceira e apenas 1% homens que migraram e usam sua língua nativa com a parceira.
A conclusão que ela chegou foi que metade das mulheres se encontram numa posição duplamente marginalizada, já que desistiram de seu status como nativas e também como nativas na língua, enquanto somente 3% de homens estavam na mesma situação. No entanto, quase o mesmo número de casais chegou num acordo pra compensar a parte migratória com o uso da língua minoritária. Ela também contabilizou casais que acabam misturando as duas línguas para manter um equilíbrio na relação, casais que ela chama de 'compromise couples'.
E por que eu tô falando tudo isso? Porque eu acho que hoje, eu e o R. somos certamente um compromise couple.
Nossa comunicação sempre foi principalmente em inglês, já que obviamente nos conhecemos em Dublin e ele é irlandês.
Nunca me senti numa posição mais frágil por estar "deixando de lado" a minha língua ao me comunicar com ele, afinal de contas, eu estudo inglês desde os 10 anos de idade e dou aula desde os 17. O inglês sempre teve uma parte primordial na minha vida e sou proficiente na língua, bilíngue em inglês e português. Então essa questão que a Piller levanta de uma das partes ser mais marginalizada por causa disso nunca foi um problema, não por esse motivo em específico.
A título de curiosidade, sempre ensinei umas palavras soltas para o R. - palavras que, com o tempo, viraram frases e pequenos diálogos. Eu gosto de ensinar, ele gosta de línguas, parecia uma boa combinação, não é mesmo?
Além disso, desde o início o R. tinha uma certa consciência da questão de língua e identidade e que, por mais que eu fosse altamente proficiente em inglês, certas coisas nunca seriam expressadas da mesma maneira que eu me expressava na minha língua materna. Dou o exemplo de "cute" e "bonitinho". Ele sempre brincava dizendo que o jeito que eu falava "ai, que bonitiiinho" era muito diferente de "that's sooo cute". R. dizia que, se déssemos certo e ficássemos juntos, ele gostaria de aprender português mais pra frente pra de fato me entender, entender quem eu era, de onde eu vinha, etc.
Depois que passamos a morar juntos, o português dele deu um boom, porque não sei se inconscientemente, mas a gente passou a se comunicar na minha língua materna cada vez mais. Não eram conversas importantíssimas ou nada do tipo, mas os pequenos diálogos viraram diálogos cada vez maiores e o vocabulário dele aumentou muito. Depois de duas idas ao Brasil e 2 anos de meio de namoro, ele resolveu aprender português formalmente: compramos material de ensino de inglês para estrangeiros no Brasil e ele tem estudado em casa, sozinho, toda semana. Eu interfiro de vez em quando, mas na maioria das vezes, o conhecimento dele é tão vasto que ele consegue fazer os exercícios sozinho.
Eu comentei mais cedo que nunca tive problema com essa questão de poder da língua. Sim, nós moramos no país onde o meu parceiro nasceu e desse ponto de vista, sim, eu estou imigrando e sou o elo mais fraco nesse sentido, já que sempre serei estrangeira aqui. No entanto, em termos de língua, nunca me senti inferior ou insegura quanto a me comunicar com as pessoas ou viver o meu dia-a-dia por aqui - a não ser quando eu precise conversar com alguém de Kerry ou da Irlanda do Norte, aí o bicho pega, hahaha!
Brincadeiras à parte, eu já comentei aqui no blog que dá muita saudade de falar português e não tenho vergonha nenhuma de dizer isso. Conheço gente que adora encher a boca pra dizer que namora com gringo e que fala inglês o dia inteiro, como se isso fosse motivo de se sentir a última bolacha do pacote. Meio sem querer, eu e o R. começamos a traçar um caminho de igualdade na nossa comunicação, de equilíbrio mesmo. A minha vontade é que, num futuro próximo, possamos ser praticamente 50/50 e falar as duas línguas dentro de casa. Ele diz que seu português nunca será tão bom quanto o meu inglês, mas se depender da minha vontade de ajudá-lo e da vontade dele de aprender, tenho certeza que chegaremos lá! :)