A vida após a perda de um filho

/

Desde que soubemos que o coração do nosso bebê não batia mais, a vida não foi mais a mesma. Por mais que tenhamos tido outras perdas, nenhuma foi tão avançada e dura quanto essa. E ter passado por um processo de parto, de escolhas funerárias, de muita luta e dor certamente nos transformou.


Mas não digo que nos transformou em pessoas melhores, não acredito nessas bobagens. O que aconteceu é que esse evento nos transformou em pais enlutados, em pais que não tiveram a escolha e oportunidade em exercerem sua paternidade e maternidade. Foi difícil preencher os papeis do crematório e perceber, por exemplo, que nós dois éramos de fato os pais daquele bebê que seria cremado, embora nosso bebê não estivesse mais nesse mundo conosco.


No entanto, eu sabia desde o início que não queria entrar num buraco e que esse evento não me paralisaria - não que tenhamos uma escolha se vamos entrar num buraco ou não, mas eu sabia que ainda tinha uma vontade de continuar a viver, e viver momentos felizes. Sou uma otimista, e por mais reclamona e crítica que eu seja, eu sei que ainda há esperança de dias melhores. Tento seguir em frente, tenho feito planos B, organizado passeios e viagens, coisas que me deixam feliz e que talvez eu não poderia fazer tão livremente caso nosso plano A ainda estivesse de pé.





Escrever sobre isso me ajuda muito a elaborar essa perda, e ler outros relatos também. Se perdas são relativamente comuns e certamente tão impactantes, por que as pessoas não falam mais a respeito? Quando dividi o que havia acontecido no meu instagram, além da enxurrada de mensagens de apoio, eu também recebi relatos de gente que tinha passado por situações parecidas, ou que conhecia alguém que tivesse passado. A gente se sente tão sozinha, acha que ninguém no mundo vai entender aquela dor, e no entanto, existem sim muitas pessoas que vão sim entender aquela dor. Mas se ninguém fala, como saber?


Eu senti muita raiva após o ocorrido, mas não somente raiva de estar passando por uma terceira perda, por estar perdendo um bebê que até então era perfeito, um bebê cujo coração batia. Eu senti muita raiva das pessoas, do resto do mundo. Senti raiva de quem me dizia que "deus sabe o que faz" ou que usava palavras como "anjinho" pra se referir ao meu bebê. Meu bebê não é um anjinho. Meu bebê era um bebê que viveu por 12 semanas, que ficou comigo por 14 semanas. Um bebê que tinha os dedinhos formados, um corpinho formado, olhos, boca, tudo. Uma promessa de uma família que sonhamos, de um sonho que tínhamos juntos, eu e o R. 


Além disso, também ouvi coisas como "você ainda vai ter o seu bebê" ou "vocês podem tentar de novo". E sabe de uma coisa? Foda-se! Eu não queria tentar de novo, não queria outro bebê - eu queria esse. Esse tipo de frase, por mais que tenha vindo de um lugar de carinho, me apunhalava. Cheguei a perguntar na terapia se valia à pena eu mandar as pessoas tomarem no cu, como se elas tivessem culpa de receber a raiva que eu sentia. A terapeuta disse que se me ajudasse, que eu poderia fazê-lo, mas que deveria pensar se aquilo realmente me traria algum alívio ou benefício.


E eu sabia que não.


Então respirei fundo, conversei muito com o R., e dei tempo ao tempo.


Hoje já não sinto aquela raiva que me dominava, mas a frustração, a tristeza, elas nunca vão embora, permeiam os meus dias. Ainda que eu tenha vivido momentos felizes desde então, ainda que eu vá viver momentos felizes daqui pra frente. Eu tenho uma vida muito boa, tenho uma rede de apoio incrível, um marido maravilhoso, muito conforto e privilégios que me trazem a certeza de estar bem amparada. Eu sei que vou viver a luz de novo, que viverei momentos de alegria. 


No entanto, percebo que quanto mais o tempo passa, menos as pessoas perguntam - pelo menos acho que não querem se intrometer ou cutucar a ferida. Estou lendo um livro de uma autora que teve 5 perdas gestacionais e tenho me identificado com TANTO do que ela fala! (Aqui é possível ler um resumo do que ela passou: as 5 gestações que não foram a termo e as 2 bem-sucedidas) Uma das coisas é que a sociedade no geral não gosta de falar sobre perda e morte, então sempre parte muito da pessoa enlutada trazer o assunto à tona e é muito cansativo. Mas se é importante pra pessoa enlutada falar sobre isso, ela deve sim falar! Não é porque meu bebê não viveu "no mundo" que ele não tenha existido. Eu acho que a gente tem que parar de ter medo de falar sobre certas coisas e sentir certos desconfortos... e o que os amigos e família podem fazer é serem ombro, oferecerem sua escuta - só isso já basta muito.


Eu já relatei o que aconteceu com a gente no hospital pra várias pessoas, e a cada vez que conto a história toda, sinto um peso ir saindo do meu coração. Ele vai ficando menor, ajuda no processo da elaboração dessa dor. Sei que talvez nem todos queiram ouvir ou se sintam confortáveis em saber dos pormenores de um parto/perda como a que eu passei, mas a nossa rede tá aí pra isso, né? Pros bons e maus momentos. Enquanto eu puder continuar falando, falarei.


Fazia umas semanas que eu não chorava mais, sentia que minhas lágrimas tinham secado. Mas aí um dia essa semana, do nada, aquela tristeza veio como uma onda, e eu deixei ela me levar. Pensei muito na letra de "Vento no litoral", e apesar de não ouvi-la há muito tempo, ela veio como trilha sonora desse momento:


De tarde quero descansar / Chegar até a praia e ver / Se o vento ainda está forte, vai /Ser bom subir nas pedras, sei / Que faço isso pra esquecer / Eu deixo a onda me acertar / E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe, vê / A linha do horizonte me distrai / Dos nossos planos é que tenho mais saudade / Quando olhávamos juntos na mesma direção / Aonde está você agora /Além de aqui dentro de mim?


Quando essa onda de tristeza vem, eu deixo ela me levar, mas nesse processo tento não me perder de mim mesma. 

Web Analytics
Back to Top