Sobre minhas três perdas gestacionais

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A minha intenção com esse post era começar a escrever sobre o dia mais triste e assustador da minha vida: o dia em que fiz o parto de um bebê sem vida na minha barriga. Mas conforme eu pensava sobre essa experiência, eu percebia que precisava voltar ao começo de tudo. Sabia que precisava escrever sobre tudo que aconteceu em 2022 pra me ajudar a lidar um pouco melhor com isso.


Então esse texto não começa no 8 de dezembro de 2022. Essa história na verdade acontece muito antes: em 18 de fevereiro de 2022, quando tive meu primeiro aborto espontâneo. Na época eu queria falar sobre isso aqui no blog, mas não me senti pronta, e outras coisas aconteceram também. No fim das contas, resolvi abrir o coração e contar aqui sobre minhas três perdas antes de focar de fato na experiência mais traumática de todas elas.




É até estranho pensar sobre esse primeiro aborto, porque parece que faz uma vida inteira... e devo dizer que me incomoda muito usar a palavra aborto. Não que eu seja contra um aborto desejado, pelo contrário! Mas é justamente isso, o aborto pra mim implica no desejo de querer terminar dada gravidez. Em inglês, existem duas palavras distintas: abortion = aborto, quando a mulher não quer mais seguir com a gestação; e miscarriage, quando o aborto acontece de maneira espontânea, sem intenção da mulher em querer interferir. Em inglês, esse prefixo "mis" significa algo que está errado, sendo feito de maneira errônea. Miscarriage = "carregar" de maneira errada. Então eu não me sinto confortável com nenhum desses termos e prefiro usar "perda gestacional".


Em fevereiro de 2022 eu estava grávida de quase 8 semanas. Não tínhamos começado a tentar há muito tempo, e embora eu não tome pílula anticoncepcional há anos (por motivos não relacionados a querer engravidar), sabia que poderia demorar até um ano. Então não tínhamos muitas expectativas, mas um pouco de ansiedade, porque querendo ou não, a pandemia estragou um pouco o timing das coisas que planejávamos. Enfim, no segundo semestre de 2021 paramos de nos proteger e seguimos a vida, sem muita neura com data de ovulação e coisas assim.


Pois bem, em janeiro veio o positivo e foi uma surpresa incrível! Eu não tinha sintomas como enjoos ou os seios doloridos, me sentia bem - com um pouco de receio dessa nova fase, mas bem. Nosso bebê nasceria em outubro, e estávamos ansiosos em já pensar nos nossos aniversários e primeiro natal com um recém-nascido. No entanto, numa sexta-feira em fevereiro acordei com muita cólica e sangramento. Ligamos pro consultório com muito medo, mas eles nos recomendaram irmos direto pra emergência da maternidade. 


Nosso primeiro positivo da vida! <3



Aqui na Irlanda, quando você fica grávida, deve preencher uma ficha do hospital-maternidade onde deseja fazer o seu pré-natal, e aqui são 3 opções: Holles St, Rotunda e Coombe. Por questões geográficas, optamos pelo Coombe. Imprimimos a ficha do site, preenchemos tudo e enviamos pelo correio. No entanto, como eu tinha enviado meus dados muito pouco tempo antes desse sangramento inesperado, chegando lá, foi aquela situação de esperar, dar os dados novamente e fazer o cadastro na hora.


Isso tudo no meio de uma cólica insuportável e bastante sangramento. Pela questão do covid o R. não pôde entrar de fato comigo na emergência, só na recepção pro cadastro. Então quando me mandaram pra ala de emergência, foi horrível. Fiquei sentada esperando me chamarem e ele voltou pro carro. Me deram um potinho pra eu providenciar uma amostra de urina, mas eu sangrava tanto que tinha muito mais sangue do que xixi. Eu sabia que tinha algo errado, mas não queria acreditar que aquilo tava acontecendo comigo.


Quando fui chamada na sala após ter entregado a urina, a enfermeira foi super grosseira ao entrar na sala e disse algo do tipo: "O que você está fazendo aqui se nem grávida está?". Foi como levar um tapa na cara, eu desabei a chorar e ela, percebendo o que tinha dito, sugeriu fazer um novo teste com a urina que eu providenciei. Me senti tão ofendida, me senti louca, como se ela estivesse gaslighting me. Poxa, há pouco mais de uma semana eu tinha ido no clínico geral e confirmado a gravidez no consultório, eu não tava imaginando coisa!


Nesse meio tempo, fiquei na sala sozinha mandando mensagens pro R., que estava desesperado esperando no carro. Comecei a procurar no Google sobre aborto espontâneo no primeiro trimestre e comecei a ver dados como "1 em 4", "25% das mulheres", "muito comum", etc. Mas nada disso me deu alívio nenhum. A enfermeira voltou, e disse que realmente o hormônio que "indica" a gravidez na urina deveria estar muito baixo no meu corpo pois já não aparecia no exame. Por isso, não havia nada que pudessem fazer por mim. Saí do hospital correndo, triste, com dor, sem entender absolutamente nada.


No carro chorei muito com o R. e voltamos pra casa. Tive as piores cólicas da minha vida e não só sangrei líquido, mas também coágulos. Foi uma sexta-feira e um fim de semana terrível. 


Nos dias que seguiram, fomos ler mais sobre as estatísticas, sobre o que havia acontecido, e sobre como perdas assim no começo da gravidez são comuns. Eu mesma tenho algumas amigas que passaram por isso, mas por algum motivo eu não tinha registrado que estava acontecendo comigo na época. Como eu já fazia terapia, tive ajuda nos meses seguintes pra lidar com aquilo. Foi muito difícil contar pra família e amigos porque ninguém sabia da gravidez ainda - então você contar: "oi gente, eu tava grávida mas não tô mais" foi muito doído. Optei por manter isso mais "privado" e não compartilhei com muita gente - e pensando agora, isso é até raro pra mim, porque não sou uma pessoa muito reservada e gosto muito de escrever, compartilhar, provocar reflexões. Mas esse assunto estava extremamente cru pra mim, e até pensei que talvez no futuro, quando engravidasse novamente, voltaria pra falar sobre isso com mais pessoas. 


Depois desse susto, me recuperei fisicamente com certa rapidez, mas não queria nem saber de tentar engravidar novamente. Como eu disse anteriormente, eu e R. não estávamos tentando há muito tempo, então demos uma pausa pra pensar em outras coisas. Acho que um dos motivos pelos quais eu não queria contar pra mais gente é que não queria sentir essa pressão e nem ouvir perguntas das pessoas se estávamos tentando novamente ou algo do tipo, sabe?


Enfim, uns meses depois, lá pra maio, voltamos ao assunto e em umas duas tentativas: engravidei! A menstruação atrasou e esperei uns dois dias pra fazer o teste (haja paciência pra segurar a ansiedade).  Dessa vez, nem comemoramos muito e resolvemos aguardar um pouco antes de ir ao médico confirmar a gestação. Porém, em menos de duas semanas do xixi no palitinho, perdemos de novo. Não foi um choque como da primeira vez, mas nessa altura do campeonato já estávamos mais cientes do quão comum e aleatório são esses abortos espontâneos, e também já estávamos familiarizados com o termo "gravidez química", que é essa perda gestacional no comecinho da gravidez. Não há uma explicação concreta, a não ser que essas perdas geralmente refletem o fato do embrião não ser inviável - algo deu errado na combinação de cromossomos aleatoriamente. Então muitas vezes a mulher nem sabe que engravidou - pode ser que a menstruação "atrase" uns dias, uma semana... e depois ela vem, mas na verdade nesse período o teste teria mostrado um positivo.


Mais um baque, mas tentamos racionalizar - "foi tão no comecinho, podemos tentar de novo". E foi isso que fizemos. E de novo, uma ou duas tentativas depois, o positivo no teste! Nem preciso dizer que dessa vez estávamos BEM MAIS aflitos, e praticamente não comemoramos nada. Tínhamos muito medo de ter outra perda, de nos apegarmos à essa vida pra perdê-la mais uma vez. Então de novo, fomos super racionais e decidimos não ficar entusiasmados pra queda não ser grande (hoje eu sei que isso não adiantou absolutamente nada).


Nas três gestações eu não tive nenhum sintoma clássico de gravidez, como o enjoo, dores, etc. A não ser por um cansaço maior do que o comum e um pouco de indigestão, nada me dizia que eu tava grávida. As semanas foram passando, fui ao médico confirmar a gravidez (e tomei vacina da gripe também) e me cadastrei novamente na maternidade.


Isso tudo aconteceu pouco tempo antes da nossa viagem pro Canadá, então decidimos ir e tentar curtir a viagem ao máximo, e de uma certa forma foi muito bom pra nos distrairmos e não ficarmos paranoicos com a gravidez. Antes de ir, também marquei um ultrassom numa clínica particular pra quando voltássemos - naquela altura estaríamos com umas 9 semanas, e teríamos uma noção se o embrião havia desenvolvido, se tinha batimentos cardíacos, etc.


Outono no Canadá, outubro de 2022



Não digo que a viagem pro Canadá em outubro nos fez esquecer que eu estava gerando uma vida dentro de mim, mas ajudou por nos ter tirado da rotina, da mesmice, em ver coisas novas e conhecer lugares novos. E assim, seguimos. Quando voltamos e fizemos o ultrassom, tivemos a confirmação de batimento cardíaco e que até então tava tudo correndo bem. Foi a minha primeira vez fazendo um ultrassom, fiquei emocionada e consegui ver o mini-bebezinho, o coração batendo, foi muito legal! Foi um alívio da porra, e aí sim contamos pra algumas pessoas - eu não queria passar pela experiência de ter que contar que perdi uma gestação antes mesmo de ter contado que estava grávida. A partir dessa 9ª semana percebi ainda mais cansaço e mudei a rotina de exercícios (na época fazia pilates e funcional duas vezes na semana cada). Pude manter ambos na rotina porque as professoras já me conheciam há muito tempo e já haviam trabalhado com gestantes também. Além disso, consegui um contato de uma fisioterapeuta pélvica pra organizar futuras consultas pra me preparar pro parto.


Primeiro ultrassom com 9 semanas



Apesar da falta de sintomas que muitos podem considerar uma benção, eu tinha medo que aquilo significasse que algo não estava certo - mesmo tendo aprendido que 30% das mulheres não tem enjoos na gravidez. Na semana 10, eu comecei a perceber a barriga ficando mais inchada e redonda, mas ainda muito pouco, porque como eu já tinha uma barriga saliente, a gravidez demora mais a de fato aparecer mesmo (porém em fotos eu conseguia notar uma diferença). Já estava tomando as vitaminas todas, já tinha lido um livro inteiro sobre alimentação na gravidez e feito algumas pequenas mudanças na minha rotina alimentar. 


Recebemos a documentação e cartas da maternidade com as próximas consultas, inclusive com a data do primeiro ultrassom oficial, que na maternidade é feito geralmente entre as semanas 11 e 13. Foi uma super ansiedade esperar, mas o dia chegou, e caiu bem no dia do aniversário do R.! Foi uma experiência muito surreal e INCRÍVEL ver novamente nosso bebê que agora não era mais um embrião e sim um feto. Vimos ele se mexer, ouvimos o coração, foi demais mesmo. Nos deram a data estimada pro parto (Junho de 2023) e saímos super felizes em saber que a fase mais crítica já tinha passado: estávamos com 11 semanas e alguns dias e nesse estágio da gravidez, tendo batimento cardíaco, a chance de tudo dar certo é de quase 100%.


Foi aí que contamos pro restante da família e mais alguns amigos, e eu estava super ansiosa pra contar pra mais gente no meu aniversário que já estava chegando. Também tive a ideia de fazer um cartão de natal com uma foto nossa segurando a foto do ultrassom - seria uma forma de anunciar a gravidez e eternizar esse momento também. Eu ainda me sentia cansada mas com energia, e além da ocasional indigestão e constipação, tava tudo certo!


Ultrassom com quase 12 semanas



Fui pra minha primeira consulta com a enfermeira obstétrica no hospital, mas nessa consulta ela fez mais perguntas sobre meu histórico de saúde e não fui examinada - a não ser coisas básicas como peso, altura, coleta de sangue e urina. Foi uma consulta super rápida e não tive tempo de fazer perguntas, mas saí de lá com um livro da maternidade com informações sobre gestação e também com outros exames marcados pra mais pra frente.


Em tese, minha próxima visita ao hospital seria no meio de dezembro, quando eu estaria de 16 semanas. No entanto, decidimos, por uma sugestão de uma colega do meu trabalho, fazer um exame extra chamado Harmony. Esse exame de sangue (e ultrassom complementar) detecta algumas possíveis síndromes no feto, como síndrome de down. Independente de você ser contra ou favor de alguém fazer um teste desses, pensamos que se fosse detectada alguma síndrome, teríamos tempo de digerir e aprender sobre antes do bebê nascer. Ah, esse exame também indica o sexo do bebê, coisa que não queríamos saber até o nascimento anyway.


Então quando eu estava com 14 semanas e 3 dias de gravidez, voltamos à maternidade pra fazer esse exame. Como eu disse, ele é um exame à parte, pago por fora, que não faz parte do pré-natal. No entanto ele é feito na própria maternidade. Fomos os últimos a sermos atendidos pois já era fim do dia: primeiro tiraram a amostra de sangue e depois fomos pra sala fazer o ultrassom. Naquele momento, não passava pela nossa cabeça que algo ruim poderia acontecer. Duas semanas antes havíamos tido a confirmação de batimento cardíaco de novo, que estava tudo bem, e a chance de uma perda depois disso é de uns 3%. Então era mais pra ver o bebê novamente, nos empolgarmos!


A moça que tava fazendo o exame olhou, mexeu o negócio na minha barriga, e eu percebi, por um milésimo de segundo, que tinha algo errado. Depois conversando com o R., ele me disse que também percebeu. Só que é aquela coisa: a gente não é profissional, não sabe como funciona direito. Achei que ela tava tentando encontrar o melhor ângulo enquanto pausava a imagem pra medir o feto. Ela segurou bem forte no meu braço e disse que não tinha boas notícias e que o coração não estava mais batendo.


Quando eu ouvi a parte do "bad news", meus olhos já encheram de lágrima. "Como assim? O que tá acontecendo? Não é possível!!!"  eu pensava, e ela continuou falando "meus sentimentos" e explicou que o bebê apresentava ter o tamanho de 12 semanas, e não 14 como deveria ser. O R. começou a chorar e perguntei o que aconteceria naquele momento. Ela explicou que alguém do hospital me ligaria com mais informações no dia seguinte sobre o procedimento. 


Nosso mundo caiu. Choramos abraçados no consultório e ela perguntou se gostaríamos de ainda enviar as amostras de sangue que haviam sido feitas - mesmo que o bebê não tivesse mais vida, poderíamos saber o sexo, se havia alguma síndrome, ter algumas respostas. Optamos por mandar as amostras mesmo assim e saímos de lá em completo choque. A viagem de volta pra casa foi um martírio, e ao chegar em casa nos abraçamos e choramos por muito, muito tempo.


Ainda naquela noite eu mandei uma mensagem de texto pra algumas pessoas da família - não tinha forças pra ligar e contar com minha própria voz. Também avisei minha gerente e pesquisamos rapidamente sobre o que aconteceria, mas não fazíamos ideia do que estava por vir.


Um dia após recebermos a notícia, caiu uma super neve em Dublin. Foi lindo, mas tão triste!



Termino esse post por aqui, e volto pra contar como foi nossa experiência no hospital nessa perda gestacional de segundo trimestre. Mas eu queria terminar esse texto dizendo que, se você já teve uma perda, não se cale. Depois que me abri sobre esse assunto recebi muitas mensagens de gente que eu nem imaginava que passaram por processos similares, pais enlutados, um sofrimento muito grande silenciado por vergonha, medo. Eu queria dizer que falar sobre isso ajuda muito a gente a não se sentir só.


Também gostaria de dizer que, por esses e tantos outros motivos, nunca, jamais pergunte a um casal se eles pensam em ter filhos, se estão tentando... você não sabe o que se passa na vida de outrem, e honestamente, não é da sua conta. Durante esse ano de perdas, eu ouvi de familiares, amigos e conhecidos do trabalho perguntas sobre filhos, enquanto já tinha tido duas perdas, enquanto estávamos nesse processo de tentativa e decepção. Guarde a sua curiosidade, não questione se você não tem intimidade e se a pessoa nunca te deu abertura. Quando estamos nessa situação fragilizada, não conseguimos dar uma resposta à altura - é muito difícil mesmo.


Enfim, fica aqui a minha contribuição, um pouco da minha história. Nesse processo de luto, ter lido outras histórias tem me ajudado muito a elaborar a minha própria.

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