O pior dia da minha vida - parte I

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Poucos dias atrás fez um mês que eu vivi o pior e mais triste dia da minha vida. Não tinha conseguido escrever sobre isso porque acho que precisava de um certo distanciamento - e confesso que apesar de já ter contado o decorrer do dia pra algumas pessoas, eu não tinha forças pra vir escrever sobre tudo que aconteceu naquele 9 de dezembro de 2022.


[ALERTA] Antes de continuar, gostaria de alertar que esse post vai ter descrições bem gráficas e pode evocar reações desagradáveis. Caso você seja sensível à isso, passe a leitura. 





Como eu citei num outro post, a maneira como descobrimos que o coração do nosso bebê não estava batendo foi muito aleatória. Tínhamos ido fazer um ultrassom à parte, que que não fazia parte do programa de pré-Natal e na ocasião vimos que o coração do bebe não batia mais. Depois, conversando com a enfermeira obstétrica no hospital, descobri que poderiam ter se passado semanas sem que a gente soubesse dessa perda. Esses são os abortos silenciosos - ela me contou de uma caso de uma moça grávida de 19 semanas que descobriu que o feto havia parado de se desenvolver com 13 semanas. É um choque muito grande!


Bom, descobrimos numa terça-feira, e no dia seguinte de manhã recebi uma ligação do hospital pra que fôssemos até lá, que estariam me esperando numa ala específica. Então fomos pouco antes do horário de almoço, e apesar de terem nos colocado numa salinha sozinhos, demorou muito pra sermos atendidos. Umas duas enfermeiras obstétricas vieram se apresentar em momentos distintos dizendo que estavam atrás do médico chefe da ala, que a medicação que eu precisaria tomar tinha que ser dada por esse médico.


Essa medicação é o Misoprostol, que ajudaria a acelerar o processo abortivo. Aliás, esse é o mesmo remédio que dão pra quem quer terminar sua gestação, então você precisa assinar um termo antes de tomar o remédio e o médico, por lei, tem que ver você ingerindo a pílula. No meu caso, não tive nenhum enjoo após ingeri-la, mas aparentemente é bem comum. A médica nos explicou como funcionaria - até então, eu achei que ia tomar essa pílula e ser mandada de volta pra casa, que começaria a sangrar, ter cólicas, como na minha primeira perda gestacional. Mas não foi bem assim. A médica usou termos como "deliver the baby" e eu fiquei em choque. COMO ASSIM FAZER O PARTO? PARTO?! Depois, a enfermeira obstétrica explicou que eu passaria pelo mesmo processo de um parto: contração, bolsa estourando, placenta, tudo. Que esse é o jeito mais seguro de passar pelo processo já que eu tava no segundo trimestre. Então eu precisaria voltar no hospital na sexta, dia 09, para internação. 


Eu nunca tinha ficado internada na minha vida, então perguntei o que precisaria levar, se o R. poderia ficar comigo... ela foi respondendo tudo, mas minha cabeça girava. Eu não tava entendendo como um parto aconteceria. Mas aconteceu.


No resto da quarta e quinta feira não trabalhei esperando que as cólicas começassem, mas nada, não senti absolutamente nada. Porém esses dias foram importantes pra eu começar a entender o que aconteceria na sexta-feira. Pesquisei mais sobre o processo, tive uma sessão de terapia, fiz uma caminhada com o R. e conversamos sobre algumas questões práticas tipo:


- vamos querer ver o bebê quando ele nascer?

- o que vai acontecer com o bebê após? 

- vamos ter que escolher algum tipo de enterro? se sim, o que preferimos?


Não foi fácil ter essa conversa - quando é que alguém tá preparado pra esse tipo de conversa? Não tínhamos nem cogitado nomes pro nosso bebê ainda! Era tudo tão precipitado. Optei por ler alguns relatos de pessoas que passaram por isso na internet e procurei por fotos de bebês de 12 a 14 semanas. Vou dizer a verdade: não são imagens bonitas. Mas eu queria estar mais preparada para o que aconteceria, não queria levar um choque ou um susto no hospital - e hoje, após ter passado pela experiência, digo que essa foi a melhor decisão! Informação realmente nunca é demais.


Na sexta demos entrada no hospital às 10h da manhã. Nos colocaram num quarto individual que tinha uma cama, uma poltrona ao lado, uma pequena TV na parede, uma pia e um armário. Por mais ou menos uma hora ficamos esperando sermos atendidos quando a enfermeira obstétrica (midwife) do plantão veio se apresentar. A E. foi super fofa, disse que voltaria logo pra começarmos o processo. Basicamente, eles me dariam doses de um remédio que estimula contrações no útero. Essas doses seriam dadas a cada 6 horas, em 4 ciclos no total. Ela me disse que não dava pra prever quantas doses seriam necessárias, mas que daria tudo certo.


Onde tudo aconteceu



Antes mesmo d'eu receber a primeira dose, tivemos duas visitas no quarto de hospital: a primeira visita da A., bereavement midwife (enfermeira obstétrica especializada em luto). Depois, da chapelão do hospital.


A A. foi uma fofa, muito delicada e nos ouviu um pouco. Ela disse que estaria disponível para suporte psicológico antes e depois do processo, e que poderíamos fazer sessões com ela por quanto tempo precisássemos. Explicou de novo o que aconteceria naquele dia, e que teríamos que pensar se gostaríamos de ver o bebê. A gente já tinha decidido que sim, e ela nos aconselhou a fazer isso mesmo. Segundo ela, alguns casais optam por não ver o bebê e depois se arrependem. Depois conversamos um pouco sobre o que aconteceria com o bebê após o nascimento, mas ela não entrou em detalhes porque quem cuida disso é a chapelão do hospital.


E de fato, pouco tempo depois a A.M., chapelão, veio conversar conosco. Não gostei tanto to approach dela, mas eu também tava em outro estado mental, né? Ela disse que tínhamos a opção de cremação, enterro no túmulo do hospital (onde o bebê é enterrado com outros bebês do hospital) ou enterro num túmulo de família. Não precisávamos decidir na hora, mas ela nos deu as alternativas, e como já tínhamos discutido entre nós dois que preferíamos a cremação, ela falou mais sobre como funcionaria o processo, que ela poderia levar o bebê até o crematório, como preferíssemos. Também falou sobre opções de urnas, se queríamos ter uma cerimônia no crematório, etc. 


Nesse momento me senti bem pressionada porque ela ficava perguntando se já tínhamos um nome pro bebê, pra colocar o nome no caixão... e a gente não tinha nome, claro. Eu fiquei muito triste, mesmo ela dizendo que podíamos optar por um nome neutro. EU NÃO QUERIA PENSAR NAQUILO. Não é a questão de escolher um nome neutro por escolher... a gente queria saber se era menino ou menina antes, e pra isso, teríamos que esperar uns meses até saírem os resultados.


Nessa altura do campeonato a gente tava achando tudo até meio exagerado - como se esse tipo de tratamento só devesse ser reservado para perdas num estágio mais avançado da gravidez. Mas depois entendemos o porquê, e hoje digo que apesar de parecer exagerado, esse processo é extremamente necessário.


Foi mais ou menos meio-dia quando a enfermeira colocou um negócio na minha veia pra não precisar ficar furando o tempo todo sabe? Coisas de hospital que eu jamais tinha vivido. Ela me deu a primeira dose, mas por umas 3h não senti nenhuma diferença. Com o R. no quarto a gente conversava, chorava, e às vezes falava de outros assuntos pra não surtar. Nesse meio tempo a A. voltou e trouxe uma caixa da lembrança - uma caixa que o hospital oferece onde você pode guardar coisas do bebê: foto do ultrassom, etc. Eles dão um ursinho de pelúcia, uma mantinha, um caderno, uma vela, tudo muito delicado e fofo. Choramos muito nesse momento, foi muito difícil!


Lá pelas 4 da tarde comecei a sentir umas cólicas, mas tava esperando contrações, cólicas mais fortes mesmo. E nada. Não que não doesse, mas eu por exemplo senti muito mais dores na minha primeira perda no começo do ano. 


De todo modo, o tempo foi passando e lá pelas 6 da tarde deram a segunda dose do remédio. Uns minutos depois senti uma coisa quente entre as pernas - mas fiquei indignada falando pro R. "tenho certeza que não fiz xixi na calça, o que é isso?" - chamamos a enfermeira, que confirmou que minha bolsa tinha estourado (!). Foi um choque, porque eu havia esquecido que isso poderia acontecer. O que quero dizer é que apesar de ter lido sobre o processo no dia anterior e ter ouvido a explicação da midwife, eu levei um susto ao constatar que de fato, eu estava passando por um parto.


Daí pra frente, o processo acelerou. Comecei a sentir uma pressão na bexiga, e a enfermeira trouxe um tipo de penico pro quarto chamado comode - parece uma cadeira de rodas com o penico em baixo. Eles trazem isso porque pode acontecer do bebê passar pelo canal vaginal, então eles não recomendam que você use o banheiro comum a partir desse momento.


Eu usava o comode, e sentia, além de um líquido quente, um "conteúdo" sair de mim. Era sangue e coágulos. Senti uma pressão muito grande em dois momentos entre 7pm e 7h30pm, e como estávamos sozinhos no quarto, não chamamos ninguém. Mas na segunda vez, achamos melhor chamar a midwife pra ela olhar o conteúdo do comode pra ver se tinha alguma coisa. Ela veio, retirou o comode do quarto e voltou: "na verdade, você já pariu o bebê". Ele estava ali, entre meu sangue e os enormes coágulos.


Desabei a chorar, me senti culpada por não ter sentido, por não ter sabido que meu bebê havia passado. Ela me tranquilizou, disse que não havia mesmo como eu saber, que não tinha problema nenhum e que eu não tinha culpa de nada. Também nos perguntou se íamos querer ver o bebê. Dissemos que sim. Nesse momento, ela saiu pra limpá-lo, e quando voltou, o trouxe numa cestinha com uma almofada e uma mantinha em baixo. Foi um momento muito avassalador. Ela nos deixou sozinhos e choramos muito. O que dizer numa hora dessa? Entre muitas lágrimas, conversamos um pouco com nosso bebê. Eu e R. soluçávamos de chorar, e eu pedia desculpas por muitas coisas - que não tinha amado aquele bebê do primeiro momento que soube de sua existência, que tinha medo de amá-lo e perdê-lo mas que o havia perdido do mesmo jeito. Foi um dos momentos mas tristes daquele dia e da minha vida inteira. Nunca vou me esquecer, e só de lembrar disso meus olhos enchem de lágrima.


Nosso bebê cabia numa mão e dava pra ver todo o seu corpinho, suas mãos, pés, seus dedinhos... a pele era levemente translúcida, e sua cabeça tinha ficado um pouco deformada de um lado na hora em que ele passou pelo canal. Podíamos ver seu nariz, seus olhos, absolutamente tudo. Foi totalmente devastador saber que fizemos aquele bebê, mas que ele não tinha mais vida, que veio ao mundo antes do que deveria ter vindo.


Depois de um tempo, eu voltei a sentir a pressão na bexiga - então não deu muito tempo de assimilar nada daqui pra frente. Eu ainda teria que parir a placenta!


Nessa hora houve uma troca de turno e conhecemos nossa próxima midwife, a H. Ela veio se apresentar e me pediu pra ficar mais sentada no comode pra gravidade ajudar, que a placenta é mais chatinha pra sair. O bebezinho ficou na cestinha no nosso quarto mesmo, e eu usava o comode mas só saía muito sangue e coágulos. Até que em um determinado momento, comecei a ficar tonta. Falei pro R., que tava sentado na poltrona, que estava tonta, e ele me pediu pra focar em alguma coisa. Nisso ele já tinha apertado o botão pra chamar ajuda e veio perto de mim. Não lembro de mais nada, mas acabei desmaiando!


Eu nunca tinha desmaiado na minha vida. Na verdade, eu nunca tinha feito nada daquilo: ficado num hospital, feito um parto, sentido contrações, desmaiado. E ainda passaria por outras primeiras vezes naquele dia.

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